Carrer de la Montcada, Passeig del Born e Carrer de la Vidrieria – Fotos: Anamaria Rossi
Barcelona é um pouco como eu, demora a se revelar aos olhos forasteiros. Demora mais ainda a se entregar. E um belo dia, quando menos se espera, ela se abre em sol, flores, amores e alamedas verdejantes para você. Se revela nas mínimas nuances. Se desnuda sem pudores. Se entrega de corpo e alma. De repente, ela é sua, toda sua.
Faz um mês que nos reencontramos, depois de quase cinco anos fingindo que não estávamos nem aí uma para a outra. Um mês de idas e vindas, piscadelas diurnas e vadiagens noturnas, trabalho pesado, batendo em pedra dura, mergulhando em água fria, capinando uma nova trilha para entrar no coração da cidade.
A dois dias da minha partida, quando eu, exausta, já mirava em outras direções, Barcelona se insinuou num sorriso, sol a pino e flores na janela, peraí Ana, fica mais um pouquinho…
Plaza del Pi, Bairro Gótico
Com meus sapatos vermelhos e um decote nada discreto, saí então pela cidade, caminhante sedutora, na esperança de resgatar o que ela ainda ocultava de mim. Deslizei suave por ruas e ruelas, ramblas, avenidas, túneis de metrô, praças, vagões, igrejas, sentindo cada batida do coração barcelonês, medindo a temperatura das ruas, mergulhando nos olhares, viajando nas portas e paredes grafitadas, sorvendo o pólen e a fumaça, fundindo meus pés ao chão de pedras sujas. Um reencontro desses demorados, cheio de preliminares, chamegos e beijinhos no pescoço.
Pátio no Bairro Gótico
Como em todas as histórias de amor, mudamos um pouco, eu e ela – e como é bom saber que, mesmo diferentes, ainda podemos ser amantes!
Da varanda do meu antigo apartamento, ela me seduz com flores vermelhas em vasinhos de barro. Já não se vê, dali, a loja de chocolates que tanta alegria e prazer me proporcionou, mas se eu olhar para a esquerda posso ver aquele guapo portenho que antes me servia Fernet no café El Born, e agora é o novo dono do bar de coquetéis no térreo.
Caminho pelo Passeig del Born e o café ainda está lá, encantadoramente demodê e jovial, com o mesmo balcão instalado sobre os compartimentos onde os antigos donos salgavam bacalhau para o armazém de secos e molhados.
Catedral de Santa María del Mar, Born
É reconfortante ver que algumas coisas ainda estão em seus lugares. Como a imagem iluminada de Santa Maria Del Mar, a virgem que dá nome à catedral não oficial cidade, construída pedra por pedra pelas levas de artesãos que dão nome às ruas do Born – Carrer de la Vidrieria, de la Formatgeria, de la Argenteria… História, aliás, contada num livro de tirar o fôlego, A Catedral do Mar (Ildefonso Falcones), e cuja magia tão particular atrai devotos e curiosos do mundo todo.
Olhando assim de supetão, tem muita coisa no mesmo lugar… A agitada xampanyeria da rua Montcada (e o Museu Picasso logo adiante), a colorida lojinha de câmeras lomo, o arco sob o qual o imigrante africano desenhava suas casas de sonho, a pracinha onde me deixei embriagar de vermut por um catalão.
Mercado de la Boquería
Desapareceram as estátuas humanas das Ramblas, mas as bancas de suvenirs continuam lá, e também o meu preferido de todos os tempos, o Mercado da Boquería, com as mesmas lojas que me seduzem desde sempre com seu sortimento de cores, aromas, sabores.
Os grafitis, ah, os grafitis! Estes sim mudam, mas continuam ali, contando a história que os livros não contam, revelando detalhes lúdicos e sórdidos da alma da cidade e de quem a habita. Quanto saberiam de Barcelona os turistas se parassem para “ler” os grafitis!
Bairro Gótico
Se já é sedutora no resto do ano, Barcelona na Primavera é absolutamente irresistível. A começar pelas frutas vermelhas e carnudas se oferecendo em todas as esquinas – cerejas, framboesas, mirtilos, morangos. Sem falar nas floridas alcachofras, nos suculentos aspargos, no pão sempre quentinho e crocante nas vitrines das forns de pá, nos queijos que se multiplicam em tons, odores e sabores, nos embutidos – ah!, toda uma enciclopédia erótica de embutidos se descortinando a seus olhos…
E como se não bastasse seu já conhecido poder de sedução, Barcelona agora me envolve em uma nova teia…
Novos lugares onde desenho meus pés no mapa da cidade…
Novos rostos, vozes e mãos a imprimirem em mim sua ternura…
Taller de Tapioca e Pão de Queijo na casa da Patu – Foto: Ieri
Vinhos que eu não conhecia (e são tantos…); a noite, a rua, a vida pulsando em infinitas possibilidades.
Selfie com Anna e Olga
E foi assim, entre aquele antigo e macio lençol de algodão e um novo jeito de cheirar meu cangote, que Barcelona me reconquistou. Numa tarde de sol de Primavera, com seu impulso de vida, me atirou pelo ar rodeada de florzinhas miúdas, me fez ver estrelas onde antes só a noite escura, me esquentou por dentro. Me acendeu.
– E agora, Barcelona? O que eu faço com tudo isso?
Ela me responde: Não tenho a menor idéia!
Eu tenho. Algumas.
Conto depois.
Um porto é um porto é um porto é um porto.