– O mundo gira e a Lusitana roda!
Donana dava as caras depois de um longo e inexplicado sumiço.
– Mas rodou mesmo essa Lusitana, heim, Donana! Por onde a senhorita andou esse tempo todo?
– Pelaí, milha filha, que o mundo é vasto. Vastíssimo!
Donana adora um superlativo.
– E essa carrinha de quem comeu e gostou?
– Ah, mas gostei muito – ela disse isso e seus olhinhos sapecas brilharam.
– Vai me contar ou não vai?
Ela contou.
Mas antes fez uma rápida viagem ao passado para lembrar três episódios marcantes de sua passagem pelo curso de Cocina em Barcelona – dois retumbantes fracassos e um sucesso ocasional.
– Lembra do molho de tomate com farinha de trigo que ficou uma nhaca? E do tagliatelle assassinado em 90 segundos na água fervente? Pois hoje eu me sinto totalmente redimida. Quatro anos depois!
Continuei não entendendo.
– Detalhes, Donana, por favor.
– Calma, que ainda tem o causo do nhoque. A-que-le que finalmente fez o chefe basco-catalão de meia pataca entender com quem ele estava falando. A-que-le que só saiu per-fei-to porque esta que vos fala não seguiu a receita espanhola. Bah! Como se os espanhóis entendessem alguma coisa de pasta!
A essa altura, minha amiga já começava a se animar. E eu confesso que estava perdida.
– Qual foi mesmo a sua subversão no caso do nhoque, Donana?
– Ah, minha filha, eu fiz o que minha memória italiana mandou: botei uma boa colherada de manteiga na massa.
– Uai, mas na receita espanhola não tinha manteiga?
– Nem ovo! Imagina se podia dar certo.
Eu continuava perdida.
– Mas por que lembrar disso agora, Donana?
– Porque eu fui finalmente salva por um chef italiano.
– Salva? Como assim?
E foi aí que ela começou a contar o causo do Paladar. Ou, melhor dizendo, do Nhoque da Redenção.
Tudo o que Donana precisava era de um chef italiano para consertar a receita que ela havia trazido da Espanha – e provar, com todas as estrelas possíveis, que a sua receita legítima e hereditariamente italiana é que estava certa.
O nome do seu salvador é Salvatore Loi. Foi com ele a primeira oficina de cozinha que Donana fez no fim de semana em São Paulo, no 8º Paladar Estadão, evento que reuniu chefs de todo o Brasil para ensinar alguns truques para leigos, curiosos e profissionais da cozinha.
O chef executou, demonstrou e explicou três receitas de nhoque. E, para felicidade auditiva, olfativa e palatável de minha amiga, todas elas levavam uma boa colherada de… manteiga!
– Nenhuma sem manteiga, Donana?
– Nem umazinha!
– E o chef explicou o motivo?
– Ora, e você acha que eu não sei? Sem a gordura da manteiga – ou de uma bela gema de ovo, como a minha mãe sempre fez – como é que os sabores e as texturas da batata, da farinha e do queijo vão se amalgamar em deliciosas bolinhas que deslizam na boca feito néctar dos deuses?
Ok, faz sentido, mas…
– O chef da sua escola lá em Barcelona não sabia disso, Donana?
– Saber ele sabia, mas deve ter esquecido, porque fez uma cara muito estranha quando eu disse que ia colocar manteiga no meu nhoque. Bem diferente da cara de gozo no momento em que ele provou meu nhoque. Aposto que ele lembrou na hora da teoria da gordura emulsionando os sabores! – e minha amiga se abriu numa gargalhada.
Eu bem que pedi, praticamente implorei, mas Donana nada de me dar a receita do nhoque redentor de Salvatore Loi.
– Nem o da Dona Nô?
– Segredo de família.
O jeito vai ser esperar o dia em que Donana resolver deixar a Lusitana rodando sozinha e finalmente botar a mão na massa. Bem lambuzada de manteiga.
Fazia tempo…